segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

A colher

para todas as colheres do mundo,

de corpo delgado e olhar redondo, a colher amanhece junto de outras colheres e de uma ou duas facas, quase não conhece os garfos, que dizem ser muito famosos em refeições europeias.



as mais pequenas esticam-se entre as grandes para entrar em chávenas de café que se dissolve na água quente, deixam-se ficar mergulhadas e tomam banhos de sol em guardanapos brancos até se seja hora do mergulho pós almoço
as colheres grandes aguardam pacientemente pelas treze ou pelas catorze horas, quando sentem as mãos trémulas de fome que as seguram entre os dedos e lhe enchem a barriga de arroz, que misturam com carne, com peixe ou com vegetais









colher após colher o picante da refeição vai-se tornando mais forte e a colher leva à boca pequenos pedaços de tamarindo, repetindo cada movimento até ao final da refeição



a colher tem ares de importância, mas às vezes deixa que a faca a acompanhe, que lhe facilite o trabalho de corte, que a ajude a ficar mais cheia
ou simplesmente deixa-se repousar enquanto a observa a percorrer a maçã em movimentos ondulados




o almoço termina e já a colher pequena se levanta do guardanapo, pois sabe que é hora de descer as escadas, de entrar no frasco de café, de sentir a água quente e de dançar na chávena azul e branca


terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Ilha de Gorée

 para os viajantes das águas claras,


debruço-me a medo na amurada do barco, fujo do olhar das ondas, centro-o nos navios que entram e saem do porto, conto-lhe as letras e a velocidade.










acedo ao convite para cruzar o barco e lá ao fundo começa a surgir a ilha de Gorée. tento captar as primeiras imagens desfocadas e deixo que a imaginação recue a tempos que não conheço. a tempos em que portugueses, franceses e holandeses aportavam por lá no tráfico de escravos.









passados vinte minutos já senti a areia em conversa com os dedos dos pés. fui registando a paisagem que inundava esta conversa até ao forte, que agora serve de museu (como me lembrou São Tomé).
entre ruas estreitas cruzei buganvílias e palavras novas, comprei a minha primeira peça de decoração e enchi a boca com a doçura do sumo de bissape.













deixei que o olhar se prendesse na leveza do mar e se desprendesse em cada obra de arte exposta nas galerias das ruas














lá longe o sol começava a descer e a encher-se de um amarelo areado: era hora de apanhar o barco de volta para a capital, entre o "excusez-moi" de gente que ignora a existência da fila de espera só porque quer ser a primeira a embarcar



domingo, 22 de novembro de 2015

De Dakar

para as fontes de mudança e inspiração, para os amigos que têm sempre um sorriso e um coração aberto





Um dia abriram-me a mão e disseram-me que a minha vida ia mudar, que a roda pararia de girar em turbulência e esta se faria, agora, de malas às costas até encontrar um pouso. Qual pássaro que aporta nos beirais das estações, que este ano fez a mala para São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, fez um pequeno saco para ir a Espanha,  encheu a mala para ir à Tailândia e ao Cambodja, carregou a mochila na Suiça e fez as malas para o Senegal. Malas, mochilas, carteiras, cheias de sonhos e de esperanças, de vontade de conhecer e se (re)encontrar, pedindo paz, desafios, amor, amizade.... Pois bem, aqui está o desafio: um contrato de trabalho no Senegal, para fazer algo que nunca fez ou nunca o fez deste modo, um trabalho longe das salas de aula, mas a pensar nelas. Um trabalho na torre de Babel onde o português se mistura com o inglês e o francês aprendidos na escola, mas nunca falado em tal intensidade.

Os dias fazem-me assim, entre a descoberta e a procura de uma casa - no pensamento de que há lugares onde não quero morar, diminuindo as expetativas de morar num sítio belo e confortável, como o último por onde passei. Em Dakar, apesar de haver carroças de cavalos e ovelhas a passear-se gentilmente pela rua, as casas são caras, bem mais caras quando se quer encontrar uma mobilada, algumas têm pormenores de decoração que chocam com o meu olhar misturado pelos lugares por onde tenho andado. A outras falta-lhes a luz de que preciso para acordar, para estar. Já as vi de todas as formas (bem, talvez ainda faltem algumas), já cheguei até elas a pé, de carro e de mota. Gostava de um dia chegar de bicicleta (que saudades), mas dizem-me que aqui é perigoso, que os carros não respeitam e eu lembro-me do caos calmo do Cambodja e de quanto me custou a reaprender a andar de bicicleta por lá, mas como depois isso me enchia o coração.


A carta vai longa e já alguém deve estar a querer saber das gentes de cá. As gentes, as gentes têm sido simpáticas e acolhedoras comigo. As gentes de cá são de cá e de muitas outras partes do mundo.
Com as gentes de cá o episódio mais caricato que me aconteceu foi ir de mota com um agente imobiliário e ter de parar pelo caminho porque passámos por um local de culto à hora da reza, logo ele precisava de rezar e eu precisei de esperar na rua com todo o respeito e com o capacete enfiado na cabeça.
As comidas de cá são de um picante extraordinário, quem é de cá diz que não sente, porém em cada almoço sinto o meu estômago a esquentar logo na primeira colher de arroz.

Com tudo isto continuo sem saber o que penso de Dakar: uma cidade que se estende muito mais para além do Plateau, com ruas com alcatrão e com areia, com táxis amarelos e pretos com quem é preciso negociar o preço todos os dias. Uma cidade com muito para descobrir, uma cidade para me levar a conhecer outros pontos do país.
É por ela que vou andar nos próximos tempos, por isso será bem-vindo quem vier por bem.



segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Check-out

 para a viagem,

O relógio atrasava-se no tempo e a mala não aparecia no tapete. Haveria de a receber dois dias depois, para distribuir recordações e voltar a colocar cada bocado de si no seu lugar.
Para a mala esta foi uma viagem longa, foi uma viagem que começou num "chama-me que eu vou" (que voltaria a repetir), que a levou a ver um mundo novo por fora e por dentro, foi um desafio ao seu sentido de orientação e ao estar "sozinha" num lugar desconhecido.

Foi uma viagem de descoberta de si, de provar novos sabores e ir a um cinema com camas e de tentar comer enquanto via o filme. 



Da viagem trouxe muita coisa que ainda não sabe, porque na palma da mão direita tem o regresso às corridas e na palma da mão esquerda tem as linhas de uma bicicleta, por isso vai pensando no dia de hoje, enquanto sonha com o de amanhã.

Zurique - escala

para os amigos que não visitei,


Zurique aparece numa escala do regresso. O tempo de escala era muito e poderia haver amigos para visitar fora do aeroporto... Mais tarde percebi que os amigos trabalhavam e que lá fora chovia, então instalou-se a dúvida: ficar no aeroporto a ver lojas ou a fazer algo no computador ou sair do aeroporto, fingindo que não chovia ou acreditando que ia parar de chover e ver o que fosse possível ver?



Tentando esquecer o quanto tinha ouvido dizer que a Suiça é cara optei pela segunda hipótese, comprei um bilhete de comboio, que daria para andar noutros transportes e que poderia ter dado para visitar museus, mas por questões de economia e de tempo deixei os museus para a próxima.
O comboio até ao centro da cidade não tem paragens e deixava ver a chuva que não parava e eu sem guarda-chuva. Pensei comprar um na estação, mas... demasiado caro para os francos que tinha na mão, por isso olhei a cidade de cada uma das portas da estação e mais uma vez fiz contas antes de me sentar a tomar um chá e a comer um croassant, à espera do sol.


O sol chegou e eu sai. Aconcheguei-me no meu lenço e segui o rio, primeiro de um lado e depois do outro, antes de regressar à estação.
Para quem tinha acabado de sair de uma cidade como Phnom Penh, Zurique é calmo demais, as ruas parecem desertas de carros e de pessoas e as bicicletas param nos semáforos! Foi frio e cinzento demais. Talvez volte lá um dia, para descobrir o segredo do chocolate.


Phnom Penh... sempre lá

Para um abraço acolhedor, 





Phnom Penh sempre lá esteve, mas ficou para ser visitada no fim, na esperança de um tempo que não passa, mas que vai passando no calendário e se aproxima da data de regresso marcada no bilhete de avião.
Neste deixar para descobrir depois, o guia de viagem não me despertou o interesse por certos locais e como (quase) sempre deixei-me levar pelo instinto, sem arrependimentos do que não foi visto e poderá (ou não) vir a ser um dia...


Nas primeiras semanas, Phnom Penh passou pelos meus olhos a pé e de tuk-tuk, quando o tempo corria, quando o sol esquentava, quando tinha de ser para chegar mais longe. Nesse tempo levantei os olhos para ver as redondezas e baixei-os no Toul Sleng Genocide Museum, levantei-os no Tuol Tompoung Pagoda, à procura de ensinamentos, centre-os no Russian Market, à procura de cada novidade entre sedas, deuses, roupas, bijuteria, frutas e tão mais que um mercado tradicional pode oferecer num labirinto quadrado ou talvez retangular.























De bicicleta cheguei mais longe, tive vontade de cruzar a ponte para outra margem, mas fiquei do lado de cá, para ver o monumento da independência, para me perder nas ruas e me encontrar no caos calmo do trânsito, para orar no Wat Phnom, para me deixar encantar pelo Palácio Real e me deixar levar no sonho de cada uma das pombas, que percorrem os jardins exteriores e viajar ao lado do River Side ou me perder no Central Market.






Phnom Penh foi um lugar para me perder e encontrar, não que a geografia da cidade seja difícil, mas para o meu sentido desorientador nem sempre é evidente que para chegar à padaria, por exemplo, é preciso virar na segunda rua e seguir sempre em frente, porque os olhos se perdem e de repente a segunda rua passa a ser a terceira.



Assim perdida em  reencontros fui apurando o meu sentido de atenção, mas houve um dia em que olhei para o calendário e ele tinha a mesma data do bilhete de avião - era hora de receber um abraço acolhedor para me perder na barriga de um avião.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Kampot pimenta

para as pontes que nos unem,


Abrir o guia e escolher o próximo destino de fim-de-semana, ingredientes: praia, campo, rio, ruas com histórias e pimenta.
Estava escolhido Kampot, com passagem por Kep, por isso o bilhete foi comprado com a antecedência devida e a cabana reservada junto ao rio.









Os ingredientes prometiam um prato gourmet, mas... entremos no autocarro antes de nos sentarmos à mesa.
Era cedo, bem cedo saltei do banco do tuk-tuk para o banco do autocarro e esperava, dali a três horas, estar sentada na areia da praia ou num banco junto ao rio, mas continuei no banco do autocarro a ver campos de arroz, a chuva que vinha e que ia, a ler, a perceber que os ponteiros do relógio já tinham ultrapassado as três horas prometidas e não fazia ideia de quanto tempo ia demorar até chegar ao destino porque o autocarro teimava em contrariar o Google Maps.







Quando decidiu deixar de o contrariar parou em Kep. Já não eram horas de parar e a praia foi avistada de um vidro cheio de chuva. Saíram passageiros, entraram passageiros e seguimos viagem.
Pára aqui, pára ali... Chuva... Nova paragem e Kampot.



Kampot fica nas margens do Kampong Bay River e pode-se lá chegar a partir da capital, de Sihanoukville ou do Vietname, por exemplo. De cada um destes locais partem os mais variados transportes... sem suspeitar escolhi o "mais longo", o que me faria olhar mais para dentro mim, para o meu lado esquerdo e para o meu lado direito.

Kampot é uma cidade pequena, com traços da arquitetura francesa e com campos de pimenta. É uma das pontes para explorar o interior do país. É um lugar pequeno que se visita numas quantas voltas de bicicleta.
É um lugar cheio de oferta turística e esconde um restaurante português, que mistura saberes e sabores.







 


Kampot foi a prova que as viagens somos nós que as fazemos, juntos ou sozinhos com o que vai dentro de nós porque o importante são as pontes que nos unem.


Siem Reap - Angkor Wat e muito mais

para o meu irmão,

no relógio quase batiam as vinte e três horas e trinta minutos e eu estava deitada no autocarro, aconchegada com uma manta por causa do ar condicionado. De lá da frente vinham anúncios em khmer e em inglês, depois de terem distribuído água e toalhitas.
Depois de uma ronda pela internet os olhos começavam a pesar e a fechar-se lentamente.
O autocarro noturno percorreu os 314 km que separam Phnom Penh de Siem Reap em seis horas, com uma paragem de cerca de trinta minutos (ou talvez menos porque eu dormia). Quando lá chegou, ainda ao sol não tinha nascido.
Nas ruas escuras foi-se tateando o hotel, para um banho e mais umas horas de descanso antes de pedalar até aos templos.


Em frente ao hotel lá estavam as bicicletas para alugar, por um dólar por dia e mais à frente, um pouquinho mais à frente como quem sai surrateiramente da cidade estava o local de compra de bilhetes para o mundo da contemplação.
Pode-se comprar bilhete para um ou para mais dias. Os vinte usd custam a sair da carteira, mas se pensarmos que podemos passar o dia todo de templo em templo, que é como quem imagina de museu em museu, os usd saem com mais confiança.
Pedalar, pedalar... Escolher virar à esquerda, para amanhã virar à direita.
Paragem número 1 e única para as poucas horas que ainda restavam da manhã: Angkor Wat.


Angkor Wat é património material da UNESCO, é silêncio na imensidão de turistas.
É daqueles locais em que a brutalidade do Homem se desvanece e se pensa como é que tantos Homens juntos, com ajuda de elefantes, conseguiram construir tal obra.
Escadas, corredores, janelas, oferendas aos deuses, paredes cheias de histórias, que levariam dias e dias a ser contadas, mas que chegam aos ouvidos resumidas pelos guias turísticos ou aos olhos, que tentam encontrar as palavras do guia nas imagens.
Angkor Wat resume-se ao estar, ao captar o silêncio no meio da multidão, ao encontrar-se para lá do horizonte quente e húmido.

Era tempo de almoçar, beber coco fresco, tomar café e continuar a pedalar.
Pedalar de templo em templo, ler histórias no guia, encontrar histórias nas paredes ou em cada figura.






A tarde ia caindo e com ela a ideia de ver o pôr-de-sol porque as condições atmosféricas não permitiam, por isso antes que a noite caísse foi tempo de pedalar de volta à cidade, banhar e jantar.
Jantar francesinha em Siem Reap era o desafio da noite. Perdidos na noite e nas ruas trocadas do Trip Advisor lá encontrámos a Ribeira do Porto, que é como quem diz um restaurante português com sotaque do Norte.
A decoração não deixa enganar e a francesinha com um toque oriental também não. Para quem se perde de saudades vale a pena encontrar-se nos sabores da terra.


Ao pequeno-almoço os sabores eram os da terra, os da terra verde e húmida, os da terra dos sorrisos e das bicicletas. Falando em bicicleta, lá estava ela pronta para mais uma viagem pela história.


Era dia de virar à direita, de não resistir e comprar roupa leve com elefantes - à porta de quase todos os templos há pequenos negócios de roupas, recordações, esculturas, pinturas ou comida (o ananás é uma aposta 100% tudo).



Foi dia de ver templos molhados e pedalar à chuva entre risos e pensamentos lavados, quase acreditando que a bicicleta era um barco com duas rodas.



Chovia no corpo cansado, que se enxugava depois de um banho frio e que se aqueceu num copo de vinho que acompanhou o peixe do jantar.








Com uma flor no canto da orelha esperei pelo tempo do autocarro que me levaria à capital, para amanhecer entre os lençóis brancos: bom-dia Phnom Penh dos telhados coloridos, bom-dia varanda dos pontos cardeais.