segunda-feira, 24 de outubro de 2016

enche a mala, esvazia a mala, troca mala, enche a mala

para as malas viajantes,



a mala está vazia e de fecho corrido. por magia, há uma mão que lhe contraria o movimento do fecho.
a mala está aberta, pronta a encher-se.
entra uma peça, outra e mais outra.

no topo o tapete de yoga.

a mala está fechada e de bilhete na mão. já conhece o ritual de apanhar um táxi e negociar para chegar ao aeroporto,  juntar-se a outras malas desconhecidas com quem troca palavras de conversa.

vai aprendendo que viajar sozinha a transporta para outras conversas. De algumas foge com balanço, com outras balanceia.

medita, faz yoga, caminha, perde-se menos na descoberta de lugares, está mais solta, mais ela.

chega ao destino e o ritual repete-se, fica mais leve sem o cadeado e o fecho deixa-se levar. saem roupas entram papéis e lembranças para meio mundo do seu coração.
trabalha, passeia-se, prova novos sabores, abraça amigos, conversa com mais desconhecidos, troca sorrisos, ouve piropos de pretendentes de viagem.

volta a casa com mais mundo aprendido.

esvazia-se, deixa-se encher. cumpre os rituais numa ordem diferente.

a mala está mais viajada e cheia de mundos no coração costurado.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

nascer de novo

para os que celebram os nascimentos,



nasce-se de novo a cada ano novo e por cá começou há dez dias um novo ano (Muharram), uma nova lua.
É dia de celebrar segundo os preceitos do profeta.
As mulheres começaram cedo a cozinhar o cuscus que à noite seria partilhado entre a família e os amigos.
Ao longe o som lembrava o poema de Mário de Sá Carneiro, "quando eu morrer batam em latas". Eram os pratos de cuscus virados ao contrário que animavam os ritmos da celebração.
Hoje é dia de contornar os olhos com khôl, visitar os órfãos e os doentes.

Hoje é dia de comer cuscus, de partilhar, de ser generoso... é dia de nascer de novo.

 
Feliz Tamkharit! Feliz Ashura!

domingo, 9 de outubro de 2016

viver sozinho, ficar doente

para ti, que não estás aqui


Viver sozinha foi algo que sempre quis antes e partilhar gavetas de meias, irritar-me com migalhas na banca ou outras desarrumações. Viver sozinha antes de partilhar o meu espaço com alguém de sempre, para sempre.
Isso aconteceu... bem uma parte do isso, o viver sozinha. Algo que tem sido uma descoberta e redescoberta de mim, do meu lugar...



Como tudo na vida, viver sozinha só não é bom quando se fica doente, quando se acorda mil vezes durante a noite e de manhã se sente que se passou a noite a jogar boxe, quando se pensa que a distância curta entre o quarto e a cozinha parece que cresceu em quilómetros e depois disso ainda há que fazer um esforço enorme para juntar tudo que é preciso para comer, procurar algum remédio que acalme a dor, antes de voltar a deitar o corpo na cama, quantas vezes o corpo pedir...

Hoje sim, seria bom ter o pequeno almoço na cama e voltar a dormir.
Não, não te inquietes deve ser só uma forte gripe que bateu à porta e entrou. Daqui a dias já me deixa sozinha.

sábado, 8 de outubro de 2016

das saudades aos beijos

aos que têm saudades,

sento-me na beira do cais e escrevo-te: saudades.








deixo um espaço e entre as reticências olho os barcos imóveis do cais, numa mistura de medo e desejo de entrar num deles.
olho a folha em branco e a caneta imóvel em pensamentos.
tenho saudades da terra que ficou, da areia que se perdia entre os dedos.
saudades das pessoas que olham os barcos que querem partir e não partem.







avanço duas linhas como se avançasse nestas ruas esburacadas há anos, como se deixasse os olhos presos nas casas que vão ficando velhas de velhas e talvez um dia já não existam mais aqui porque ninguém as renova num abraço,
avanço três linhas e encontro conhecidos, perco-me em abraços e em dois dedos de conversa enchem-se dois palmos de estômago,





esqueço que estou na beira do cais à espera que barcos imóveis partam,
esqueço-me das saudades...lembro-me dos beijos que escrevo em letra redonda antes do ponto final.
volto a casa, volto a ti para lembrar saudades

sábado, 1 de outubro de 2016

Dakar verde

para as coisas simples da vida,
(como a água que corre na torneira)

 






As chuvas vão sendo mais escassas, mas não perdem a intensidade, deixam saudade nos dias de calor intenso, deixarão saudades na terra árida coberta de verde, que daqui a meses se despirá e se entregará ao pó.

 






Mas por enquanto as ervas espreitam entre as pedras, que os homens desviam com pequenas pás, para as forçarem a sair de lá e as deixar secar em pequenos montes. As mesmas que enchem as delícias de uma manada de vacas no meio da via rápida.

 











 






 

Dakar verde com chuvas nocturnas levou a água da torneira, fez sair a água das reservas em garrafões de outras águas. Transportou-me aos primeiros anos em terras aridamente húmidas onde os banhos de caneca e a contagem das gotas no lavar da louça eram partes do dia. Transportou-me para pensamentos sobre a eventual pressão da água em horas nocturnas, para recuperar reservas.


 

 A chuva lá fora acordou-me e lembrou-me a bacia que estaria cheia e a verter, os garrafões que ainda poderia encher na pressa da pressão do sono.
Olho aberto, olho fechado.
Torneira aberta, torneira fechada. Torneira aberta água corrente, água de reserva. Dakar verde de chuva, na esperança que a água não vá.